Notícias JurídicasVAR e os órgãos de controle das decisões administrativas

VAR e os órgãos de controle das decisões administrativas


A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Loper Bright v. Raimondo, ao revogar a histórica doutrina Chevron, sinaliza uma guinada institucional de grande repercussão: o abandono da deferência judicial automática às interpretações de órgãos técnicos e reguladores. Nesse sentido, a Corte reafirma sua autoridade para dar a última interpretação da lei, mesmo diante de temas altamente especializados. No pano de fundo dessa virada está uma crescente desconfiança institucional, que considera o Poder Executivo como capturado, ideológico ou excessivamente intervencionista.

No Brasil, no entanto, o problema é outro — e a solução deve ser diametralmente oposta. Em vez de reduzir a deferência judicial às instâncias técnicas e políticas, é preciso reforçá-la. A multiplicação de decisões judiciais que substituem o juízo técnico do administrador pelo juízo subjetivo do julgador, muitas vezes com base em princípios genéricos e abstrações morais, tem gerado insegurança, paralisia e deslegitimação da atuação estatal. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), em suas versões atualizadas, fornece instrumentos normativos importantespara enfrentar esse quadro. Como veremos, a deferência técnica, longe de ser um cheque em branco, é uma expressão de racionalidade democrática e um antídoto contra o decisionismo voluntarista.

O debate sobre a deferência não é apenas técnico. Está enraizado em uma concepção de democracia. Jeremy Waldron, em sua crítica já clássica à revisão judicial, alerta para os perigos de transformar o Judiciário em um fórum superior de moralidade e racionalidade, que revoga as decisões de órgãos democraticamente legitimados sob o pretexto de proteger direitos. Sob essa perspectiva, para Waldron, a judicialização excessiva da política corrói a noção de autogoverno e esvazia o princípio da soberania popular.

Essa crítica ganha ainda mais força quando se observa que, no cotidiano institucional, não são raras as decisões judiciais que substituem avaliações técnicas ou discricionárias por valorações pessoais, fundadas em princípios vagos como “interesse público” ou “eficiência”, desprovidos de vínculo concreto com os elementos do caso. Desse modo, o resultado é a erosão da autonomia decisória do administrador e a desvalorização das estruturas técnicas e da expertise que orientam a ação pública.

No cenário brasileiro, o professor Elival da Silva Ramos oferece uma leitura aguda do fenômeno do ativismo judicial. Nesse aspecto, a expansão do neoconstitucionalismo e da interpretação principiológica tem servido, não raramente, como mecanismo de legitimação de escolhas judiciais ideológicas, que rompem com a harmonia institucional esperada de um Poder que não detém mandato popular. Ramos denuncia a prática recorrente de transformar o Poder Judiciário em sede preferencial de deliberação sobre políticas públicas, esvaziando os espaços legítimos do Legislativo e do Executivo.

Ao contrário da imagem idealizada do Judiciário como bastião da razão, o ativismo revela um voluntarismo decisório que muitas vezes se dissocia da legalidade e da prudência institucional. Reforçar a deferência, nesse contexto, não é abdicar do controle — é reconhecer a primazia da legitimidade democrática nas escolhas públicas.

De modo oposto ao que sustenta a decisão da Suprema Corte dos EUA no precedente Loper Bright, o ordenamento jurídico brasileiro reconhece e estimula a deferência técnico-institucional por meio de comandos normativos claros. Nesse sentido, o artigo 22 da Lindb, conforme analisa Eduardo Jordão, impõe ao julgador e ao controlador o dever de considerar as limitações fáticas e normativas enfrentadas pelo agente público no momento da tomada de decisão. Isso significa que não se trata apenas de avaliar a juridicidade abstrata do ato, mas de compreendê-lo em seu contexto, levando em conta as restrições práticas e os custos de alternativas não adotadas.

O mesmo se verifica no artigo 20 da Lindb, analisado por Marçal Justen Filho, que exige das decisões administrativas, judiciais e de controle não apenas fundamentação em normas, mas a demonstração da adequação, necessidade e proporcionalidade da medida adotada, com análise de seus efeitos concretos. Com isso, a norma busca corrigir o vício histórico da decisão pública fundada em fórmulas vagas e valores abstratos — como “dignidade”, “justiça” ou “interesse público” — que, muitas vezes, servem mais para legitimar escolhas intuitivas ou ideológicas do que para concretizar direitos.

Ainda sobre esse aspecto, Marçal alerta para uma potencial “preguiça argumentativa” ou “simplismo decisório”, que se manifestam na repetição de fórmulas abstratas como substitutivos de motivação real. A Lindb, portanto, não é um convite à leniência, mas uma convocação à seriedade e ao rigor argumentativo: toda decisão que interfira na atuação administrativa deve demonstrar que compreendeu o contexto, avaliou as alternativas disponíveis e mediu as consequências de sua intervenção.

A ideia de deferência como forma de racionalidade institucional é bem desenvolvida por Isaac Kofi Medeiros em seus estudos sobre o controle judicial de políticas públicas. Para o autor, a deferência não é um gesto de submissão do Judiciário ao Executivo, mas uma expressão de autocontenção responsável, fundada na constatação de que o juiz não é, nem deve ser, o substituto legítimo do formulador de políticas

Spacca

Sob esse prisma, Isaac Kofi Medeiros propõe critérios para que a deferência seja aplicada de maneira prudente, especialmente em contextos de alta complexidade técnica ou de pluralismo razoável de alternativas. Nesses casos, o Judiciário deve reconhecer que há uma margem de conformação legítima do agente público, desde que respeitados os limites da legalidade, da motivação e da razoabilidade.

A deferência, nesse sentido, é uma técnica de proteção institucional: preserva a legitimidade dos atos discricionários, evita o decisionismo judicial e reconhece que a elaboração de políticas públicas exige deliberação ampla, consulta técnica e avaliação de impactos — elementos que extrapolam a função do juiz.

A atuação dos órgãos de controle e do Poder Judiciário no Brasil, quando extrapola os limites da legalidade estrita, lembra a dinâmica de outro campo em que a revisão deveria ser exceção: o futebol. O VAR (Video Assistant Referee) foi concebido para corrigir erros claros e evidentes — como um impedimento não marcado ou um pênalti inexistente. No entanto, sua utilização tem sido cada vez mais invasiva, reavaliando lances interpretativos e desautorizando decisões de campo que, embora legítimas, não são “perfeitas” sob o crivo de quem assiste ao vídeo em câmera lenta.

Essa analogia é precisa. Assim como o VAR deveria intervir apenas quando há flagrante erro do árbitro, o Judiciário e os órgãos de controle deveriam exercer a autocontenção, atuando apenas quando a decisão administrativa for manifestamente ilegal, irrazoável ou desprovida de motivação. Ao substituir juízos discricionários legítimos por convicções pessoais, esses órgãos comprometem a autonomia técnica do gestor público e promovem uma cultura de temor e paralisia decisória — o gestor passa a atuar com receio não de errar, mas de ser reinterpretado por quem, de fora do campo, não viveu o jogo.

A LINDB, ao reforçar a necessidade de contextualização, proporcionalidade e motivação consequencialista, oferece os parâmetros para que essa autocontenção se torne prática institucional consolidada. Desrespeitá-la é renunciar ao equilíbrio entre controle e legitimidade, trocando a prudência pela imposição de convicções pessoais travestidas de técnica.

Reforçar deferência técnica é proteger a democracia

O Brasil não deve seguir o modelo norte-americano de retração da deferência judicial, como consagrado no precedente Loper Bright. Nosso desafio institucional é outro: limitar a judicialização excessiva de políticas públicas e preservar a autonomia técnica da Administração, em respeito à legitimidade democrática das decisões formuladas no interior do Executivo e do Legislativo.

A deferência, nesse cenário, não representa submissão, mas sim uma técnica de contenção institucional que protege o espaço próprio de cada Poder. Ela reconhece que o controle deve ser exercido sem substituir o critério técnico do administrador pela convicção subjetiva do julgador — como orientam os artigos 20 e 22 da Lindb, e como reforçam as reflexões de Marçal Justen Filho, Eduardo Jordão e Isaac Kofi Medeiros.

Voltemos ao VAR. Quando um árbitro de vídeo decide rever um lance que não é evidente, ele inverte a lógica do jogo: transforma o instrumento de correção em protagonista da partida. Quando o Judiciário ou os órgãos de controle se comportam da mesma forma — corrigindo escolhas legítimas com base em impressões abstratas ou valores genéricos —, não exercem controle: apitam o jogo no lugar do gestor público. E, como se sabe no futebol, nada pior do que um juiz que quer ser mais importante que o espetáculo.

No campo da administração pública, isso significa insegurança, imobilismo e descrédito institucional. Reforçar a deferência técnica é, portanto, proteger a democracia, prestigiar o saber especializado e recuperar a racionalidade na tomada de decisões públicas.

 


Referências:

JORDÃO, Eduardo. Art. 22 da LINDB – Acabou o romance: reforço do pragmatismo no direito. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na LINDB, p. 77-102, nov. 2018.

JUSTEN FILHO, Marçal. Art. 20 da LINDB – Dever de transparência, concretude e proporcionalidade nas decisões públicas. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na LINDB, p. 13-41, nov. 2018.

MEDEIROS, Isaac Kofi. Ativismo judicial e princípio da deferência à administração pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial e representação política: a crise institucional brasileira. Revista de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, v. 1, e205200, Campinas, 2020.

WALDRON, Jeremy. O cerne da posição contrária à revisão judicial. Tradução de Diego Werneck Arguelhes. Revista Direito GV, v. 10, n. 2, p. 435-472, jul./dez. 2014.

 





Fonte: Conjur

Leia mais...