Mercado JurídicoSTF, o constituinte reformador e a subversão do direito do trabalho

STF, o constituinte reformador e a subversão do direito do trabalho



Em A revolução dos bichos, George Orwell nos apresenta a emblemática cena em que os porcos, assumindo o controle da fazenda, alteram sub-repticiamente os mandamentos que eles próprios haviam estabelecido. O sétimo mandamento, “Todos os bichos são iguais“, um dia foi acrescido de uma pequena, mas decisiva frase: “mas alguns são mais iguais que os outros“.

Esta alteração silenciosa da “constituição” dos animais ilustra perfeitamente o fenômeno que assistimos hoje no Brasil: a reforma constitucional promovida sem Assembleia Constituinte, sem Congresso Nacional, sem amplo debate público.[1]

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A recente decisão do ministro Gilmar Mendes no ARE 1.532.603/PR, que suspendeu nacionalmente todos os processos relacionados ao Tema 1389 da repercussão geral, revela o risco de o Supremo Tribunal Federal silenciosamente reescrever a Constituição, particularmente no que tange às relações de trabalho e à competência da Justiça do Trabalho.

Nessa decisão, o STF se debruça sobre três questões fundamentais: a competência da Justiça do Trabalho para julgar alegações de fraude em contratos civis de prestação de serviços; a licitude da contratação de trabalhadores autônomos ou pessoas jurídicas; e o ônus da prova na alegação de fraude contratual.

O texto constitucional é cristalino ao estabelecer, em seu art. 7º, um extenso rol de direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, todos evidentemente alicerçados na premissa da relação de emprego como regra. Por esse motivo, o art. 114 da Constituição atribui à Justiça do Trabalho a competência para julgar “as ações oriundas da relação de trabalho”.

A interpretação sistemática desses dispositivos não deixa dúvidas: o constituinte concebeu a relação de emprego como o modelo preferencial de trabalho subordinado, e conferiu à Justiça especializada a competência para identificar e coibir tentativas de sua desfiguração.

No entanto, em sua decisão, o ministro Gilmar Mendes afirma que “parcela significativa das reclamações em tramitação nesta Corte foram ajuizadas contra decisões da Justiça do Trabalho que, em maior ou menor grau, restringiam a liberdade de organização produtiva“. Prossegue alegando que há uma “reiterada recusa da Justiça trabalhista em aplicar a orientação desta Suprema Corte sobre o tema“.[2]

Há nessa afirmação uma inversão lógica preocupante. Não se trata de “recusa” da Justiça do Trabalho, mas de fidelidade ao texto constitucional. O que o STF chama de liberdade de organização produtiva não pode ser um cheque em branco para fraudar a legislação trabalhista, tampouco pode se sobrepor ao modelo constitucional que claramente privilegia a relação de emprego.

Igualmente grave é a tentativa de retirar da Justiça do Trabalho sua competência constitucional para avaliar, caso a caso, a existência de fraude nas relações contratuais trabalhistas. Quando o STF busca estabelecer de antemão que determinadas formas contratuais são presumivelmente válidas, independentemente de sua realidade fática, está na prática revogando o princípio da primazia da realidade, pilar fundamental do Direito do Trabalho.

O ministro argumenta que o “aumento expressivo do volume de processos que tem chegado ao STF” é uma das justificativas para sua decisão. A solução para o congestionamento do Supremo não pode ser o esvaziamento do artigo 7º da Constituição.

Os dados do Relatório Justiça em Números 2024 mostram que a maioria das ações trabalhistas se origina do descumprimento de obrigações contratuais básicas. Não é o excesso de litigiosidade que sobrecarrega o sistema, mas o descumprimento sistemático de direitos. A decisão do STF, ao invés de atacar a causa do problema, penaliza justamente aqueles que buscam a tutela de seus direitos constitucionalmente assegurados.[3]

Ainda que a discussão sobre novas formas de trabalho seja necessária e atual, a via para essa evolução não pode ser o ativismo judicial que reescreve silenciosamente a Constituição. Se nosso modelo constitucional de trabalho subordinado precisa ser repensado, que o seja através dos mecanismos democráticos previstos para tanto: o debate legislativo e, se necessário, a emenda constitucional.

A decisão do ministro Gilmar Mendes, ao suspender nacionalmente os processos relativos a relações de trabalho possivelmente fraudulentas, não representa apenas um entrave processual temporário. Simboliza, antes, um perigoso passo em direção a um modelo jurisdicional que pode descartar direitos fundamentais por motivos econômicos.


[1] ORWELL, George. A revolução dos bichos. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza. São Paulo: Via Leitura, 2021. Páginas 37 e 108.

[2] ARE 1.532.603/PR. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15375825805&ext=.pdf . Acesso em: 16/04/2025. Página 3.

[3] Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2024. p. 351. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/05/justica-em-numeros-2024.pdf. Acesso em 16 de abril de 2025.



Fonte: Jota

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