Opinião
Em 30 de agosto de 2018, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF 324 e do RE 958.252, decidiu, por maioria, que é lícita a terceirização de atividades‑fim. A decisão alterou entendimento anterior pacificado na Justiça do Trabalho que permitia apenas a terceirização em atividade-meio.
Desde então, o tribunal tem acolhido essa tese, em julgamento de diversas reclamações constitucionais originárias da Justiça do Trabalho, em casos que versam sobre a configuração dos requisitos configuradores de vínculo de emprego. Exemplificativamente, citamos as reclamações Rcl 56.982‑AgR/CE, Rcl 57.391‑AgR/CE e Rcl 47.843‑AgR/BA, nas quais o STF impediu o reconhecimento de vínculo em contratos formalizados via pessoa jurídica, mesmo diante de indícios de subordinação direta.
Em abril de 2025, ao analisar o processo ARE 1.532.603, que versa sobre vínculo entre corretor e seguradora (originalmente contrato de franquia), o ministro Gilmar Mendes determinou a suspensão de todos os processos que tratam da licitude da contratação de trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços, a chamada “pejotização” — determinando ao Plenário que, em sede de repercussão geral (Tema 1.389), fixe critérios claros para a existência de vínculo nessas hipóteses.
No despacho, o ministro Gilmar destacou que “o descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal Federal pela Justiça do Trabalho tem contribuído para um cenário de grande insegurança jurídica, resultando na multiplicação de demandas que chegam ao STF, transformando-o, na prática, em instância revisora de decisões trabalhistas”. Tal crítica tem sido recorrente em declarações do ministro Gilmar.
Aliás, fato curioso deste caso é que a decisão e a crítica — vieram em um recurso extraordinário interposto pelo reclamante, uma vez que o TST havia julgado improcedente o pedido de vínculo, ou seja, o processo na Justiça do Trabalho teve resultado útil alinhado ao entendimento prevalente no STF.
A decisão do ministro Gilmar foi objeto de severas críticas de setores da sociedade e na academia e tem gigantesco impacto social e econômico, seja para o futuro das relações de trabalho e na arrecadação previdenciária.
Spacca

Entendemos haver incompatibilidades técnicas na aplicação de tal tese a situações que são claramente não idênticas às do caso concreto.
O Código de Processo Civil impõe aos tribunais o dever de uniformizar sua jurisprudência e mantê‑la estável, íntegra e coerente, de modo a garantir segurança jurídica e previsibilidade das decisões (CPC, artigo 926), ao passo que o artigo 102, §2º, da Constituição confere às decisões em controle concentrado eficácia erga omnes e efeito vinculante, sem, contudo, permitir sua extensão automática a casos fáticos diversos daqueles efetivamente examinado.
Necessidade de distinguishing e de overruling
Para preservar a coerência do sistema de precedentes, o CPC exige ainda que qualquer decisão que se afaste de precedente vinculante demonstre fundamentadamente a distinção de fatos ou fundamentos — o chamado distinguishing — ou justifique expressamente sua superação (overruling), o que encontra previsão no seu artigo 489, §1º, VI. Tal técnica é essencial para evitar que precedentes vinculantes sejam generalizados além de seu escopo original, o que poderia comprometer a integridade da jurisprudência.
Para resguardar a autoridade de suas decisões e preservar sua competência originária, o ordenamento prevê a reclamação constitucional, instrumento previsto no artigo 102, I, “l”, da CF/88 e disciplinado nos artigos 988 e seguintes do CPC. Seu cabimento abrange situações em que decisões de instâncias inferiores desrespeitam ou usurpam precedentes vinculantes ou afrontam competência do STF, permitindo ao tribunal corrigir julgados conflitantes e assegurar a observância de enunciados de repercussão geral, súmulas vinculantes e precedentes em controle concentrado. Dessa forma, a reclamação constitucional atua como guardiã da uniformização e da eficácia real das teses vinculantes.
Salto hermenêutico
Pois bem, quando o STF estende sem critério a tese da legalidade da terceirização de atividade-fim à contratação fraudulenta de pessoa física via pessoa jurídica (ou franquias, no caso do RE), passa a aplicar o mesmo entendimento a situações que podem ser substancialmente diferentes. São hipóteses que não se encaixam na hipótese decidida sem um “duplo twist carpado hermenêutico”. Como exemplo, o precedente original exigia a existência de uma relação triangular com três atores distintos.
Como resultado, os tribunais de instâncias inferiores ficam obrigados a seguir essa interpretação ampla mesmo diante de fatos diversos, gerando decisões conflitantes e imprevisíveis. Sem parâmetros claros para delimitar o alcance do precedente, empregadores e trabalhadores perdem a orientação necessária para estruturar seus contratos de forma segura. E, por fim, ao suprimir a possibilidade de demonstrar distinções relevantes, debilita‑se o devido processo: cerceia‑se a apresentação de argumentos específicos, ataca‑se a ampla defesa e o contraditório, e compromete‑se a própria segurança e coerência do ordenamento jurídico.
Em resumo, quando o STF amplia sem critérios a tese firmada na ADPF 324 para todas as discussões que envolvam análise de contratação de autônomos ou contratos fraudulentos via pessoa jurídica, impede‑se também a aplicação da técnica do distinguishing, pois as distinções factuais perdem relevância; fragmenta‑se a jurisprudência ao multiplicar decisões divergentes nas instâncias inferiores além de cercear o devido processo ao tolher a apresentação de argumentos específicos sobre a inaplicabilidade do precedente original.
A interpretação extensiva do STF na ADPF 324 (sem entrar no mérito de tratar de uma evidente situação de fato, cuja análise é vedada em Tribunais superiores), mostra-se tecnicamente desconexa do sistema de precedentes brasileiro, ao afastar-se dos requisitos de fundamentação previstos no CPC e na Constituição. Urge, portanto, que tribunais inferiores e o próprio STF resguardem a estrita observância dos modelos de precedentes, garantindo integridade e segurança jurídica à sociedade.
Fonte: Conjur