A prestação de contas constitui um dos pilares do regime republicano e do controle da administração pública. A obrigação de informar à sociedade como os recursos públicos foram aplicados está diretamente vinculada ao princípio da transparência e ao direito fundamental à boa governança. Um dos principais instrumentos desse processo é o parecer prévio emitido pelos tribunais de contas, nos termos do artigo 71, inciso I, da Constituição [1]. Contudo, quando o chefe do Executivo morre durante o curso do processo de prestação de contas, levanta-se a questão: o dever do Tribunal de Contas emitir o parecer prévio permanece?
A questão é relevante, pois ainda não há consenso entre os tribunais de contas. Alguns entendem que, nesses casos, há um prejuízo à ampla defesa e contraditório e, portanto, o processo deve ser extinto sem resolução do mérito[2] [3]. De modo diverso, outros entendem que o interesse público deve prevalecer, assegurando-se o cumprimento do dever constitucional do tribunal de contas de emitir um parecer prévio opinativo conclusivo, sem necessidade de abstenção de opinião[4] [5].
Para uma análise apropriada sobre o tema, necessário se faz compreender, antes de tudo, a natureza do dever de prestar contas e o dever constitucional dos tribunais de contas de emissão do parecer prévio.
Obrigação de ordem pública
Inicialmente, o dever de prestar contas deve ser entendido como uma obrigação de ordem pública, conforme determinação do artigo 70, parágrafo único, da Constituição:
Art. 70. […]
Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.
Ao mesmo tempo, a prestação de contas também é um direito subjetivo público do cidadão [6]. A Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal — LRF), em seu artigo 49, estabelece o dever da administração pública de manter as contas “à disposição de qualquer cidadão”, assim:
Art. 49. As contas apresentadas pelo Chefe do Poder Executivo ficarão disponíveis, durante todo o exercício, no respectivo Poder Legislativo e no órgão técnico responsável pela sua elaboração, para consulta e apreciação pelos cidadãos e instituições da sociedade.
Trata-se, portanto, de um direito de ordem pública de natureza coletiva, inerente ao sistema republicano de governo. O descumprimento desse dever traz sérias consequências, podendo ensejar, entre outras medidas, intervenção federal em estado-membro (artigo 34, VII, ‘d’, da Constituição) ou a intervenção estadual em município (artigo 35, II, da Constituição).
Não bastasse, o chefe do Executivo que não prestar contas em 60 dias comete crime de responsabilidade [7] e fica sujeito à perda do cargo e à proibição de exercer qualquer função pública por até oito anos [8].
Nota-se serem medidas de natureza excepcional que refletem a vontade do constituinte originário de garantir a primazia do interesse público, assegurando a efetiva prestação de contas por parte dos gestores públicos.
Responsabilidade entre o agente e o representado
Vale lembrar que, no contexto republicano, estabelece-se uma relação de responsabilidade e controle entre o representante (o agente) e o representado (principal), e, por isso, na esfera das contas públicas, o chefe do Executivo não atua em nome próprio, mas em nome e no interesse da sociedade. Por essa razão, impõe-se aos agentes públicos o dever contínuo de transparência e de prestação de informações, estando sujeitos a diferentes formas de responsabilização por seus atos. Tal dever se manifesta tanto em sentido amplo — relacionado à obrigação de garantir acesso à informação e transparência na gestão — quanto em sentido estrito, que envolve o envio formal das contas do exercício financeiro aos órgãos competentes para análise e julgamento.
Spacca

Destaca-se que a prestação de contas e o parecer prévio emitido pelo tribunal de contas constituem elementos essenciais para a concretização dos princípios da transparência e do controle social, conforme preconiza o artigo 48, da LRF. Por esse dispositivo, tanto a prestação de contas quanto o parecer prévio são definidos como instrumentos de transparência da gestão fiscal, juntamente com os planos, orçamentos, leis de diretrizes orçamentárias e os relatórios de gestão fiscal, os quais devem ser amplamente divulgados, inclusive em meios eletrônicos de acesso público.
Além disso, o parecer prévio subsidia a atuação do parlamento no exercício pleno de uma de suas funções essenciais: a fiscalização das contas do Poder Executivo. Assim, a elaboração do parecer constitui condição indispensável para que o legislativo possa exercer, de maneira efetiva, o controle das finanças públicas sob responsabilidade do chefe do Executivo. A abstenção do tribunal de contas em seu dever comprometeria o equilíbrio entre os poderes, ferindo a lógica da separação e da harmonia entre suas atribuições constitucionais.
Processo de contas
Evidenciada a relevância do dever de prestar contas e do parecer prévio, importa destacar a tridimensionalidade do processo de contas, conceito elaborado pelo ministro-substituto do Tribunal de Contas da União Augusto Sherman Cavalcanti, em seu artigo “O processo de contas no TCU: o caso de gestor falecido”. [9]
Por esse conceito, o processo de contas, no âmbito dos tribunais de contas, compreende três dimensões essenciais à sua finalidade constitucional: a dimensão política, a dimensão sancionatória e a dimensão indenizatória. [10]
A dimensão política refere-se ao julgamento da gestão pública e visa assegurar a transparência e o controle social sobre o uso dos recursos públicos. Trata-se de uma função de natureza institucional e republicana, pois garante à coletividade o direito de conhecer como os recursos arrecadados foram aplicados. O julgamento das contas, nesse contexto, não se destina exclusivamente ao gestor, mas à sociedade, que é a verdadeira titular dos recursos públicos.
A dimensão sancionatória decorre da constatação de irregularidades na gestão e tem por objetivo aplicar sanções ao agente público responsável. Essa vertente está sujeita aos princípios do direito sancionador, como legalidade estrita, pessoalidade da pena e necessidade de dolo ou culpa. A sanção não pode ultrapassar a pessoa do gestor por determinação do artigo 5º, inciso XLV, da Constituição, razão pela qual sua morte extingue essa dimensão do processo, ainda que as contas possam continuar a ser julgadas sob os demais aspectos.
Por fim, a dimensão indenizatória busca a recomposição do erário em caso de dano causado pela má gestão. Essa responsabilidade é regida pelas normas da responsabilidade civil subjetiva, exigindo a comprovação de dano, nexo causal e conduta culposa ou dolosa. Diferentemente da sanção, a obrigação de indenizar pode alcançar os sucessores do gestor falecido, limitada ao patrimônio transferido, nos mesmo moldes do dispositivo constitucional do parágrafo anterior.
A partir dessa compreensão, conclui-se que apenas a dimensão sancionatória se extingue com a morte do gestor, por sua natureza personalíssima. As dimensões política e indenizatória permanecem válidas, assegurando o julgamento das contas e a eventual reparação ao erário.
Atuação em nome da coletividade
No processo de contas de governo, as contas evidenciam essa dimensão política, em que o chefe do Poder Executivo, prefeito ou governador, atua em nome do principal, a coletividade, como destaca Sherman [11]:
[…]o julgamento de contas, antes de ser interesse exclusivo do gestor responsável, concerne a toda a sociedade, pois que a ela está constitucionalmente assegurado o direito de conhecer como foram utilizados os recursos que lhe pertencem. E mais, é o Tribunal de Contas da União, no cumprimento de sua missão institucional, que concretiza esse direito da sociedade, no que atina aos recursos públicos federais. Desse raciocínio resulta que o principal destinatário do processo de contas é antes a coletividade do que o gestor. O gestor é destinatário secundário, tão apenas.
Nessa linha de interpretação teleológica, tem-se que o processo de contas de governo transcende os limites de uma ótica puramente personalíssima e de responsabilização, para alcançar seu objetivo finalístico: apresentar os resultados do exercício financeiro que subsidiará o julgamento pelo legislativo. Por essa razão, o tribunal de contas apenas aprecia as contas, emitindo parecer prévio de natureza opinativa, sem conteúdo deliberativo.
Importante destacar que a emissão de parecer prévio não está voltada para a atuação pessoal do administrador governante, não gerando consequências jurídicas imediatas. Ao contrário, visa à avaliação do alcance e a repercussão dos atos de governo no decorrer de determinado exercício financeiro, como lecionou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, em voto de sua relatoria: [12]
É importante sublinhar, ademais, que, no julgamento das contas anuais do prefeito, não há julgamento do próprio prefeito, mas deliberação sobre a exatidão da execução orçamentária do município. A rejeição das contas tem o condão de gerar, como consequência, a caracterização da inelegibilidade do prefeito, nos termos do art. 1º, I, g, da LC 64/90. Não se poderia admitir, dentro desse sistema, que o parecer opinativo do Tribunal de Contas tivesse o condão de gerar tais consequências ao Chefe de Poder local. Sublinhe-se, entretanto, que, no caso de a Câmara Municipal aprovar as contas do prefeito, o que se afasta é apenas sua inelegibilidade. Os fatos apurados no processo político-administrativo poderão dar ensejo à sua responsabilização civil, criminal ou administrativa. Depreende-se desse debate, por isso mesmo, a necessidade de observância dos princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e da motivação pela Câmara Municipal, por ocasião da rejeição das contas do prefeito.
A posição majoritária, adotada pelo STF no julgamento do recurso extraordinário RE 729744, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, reconheceu que o parecer prévio tem natureza meramente opinativa, não acarretando, isoladamente, a inelegibilidade do chefe do Executivo. Tal consequência jurídica somente poderá ocorrer após manifestação conclusiva do legislativo, com a rejeição das contas e a identificação de irregularidades insanáveis configuradoras de ato doloso de improbidade administrativa, nos termos do artigo 1º, inciso I, alínea ‘g’, da Lei Complementar nº 64/1990.
Com efeito, a morte do chefe do Poder Executivo durante o processo de prestação de contas não obsta a continuidade da análise técnica das contas públicas pelo tribunal de contas, nem tampouco a emissão do parecer. Essa conclusão decorre da natureza coletiva e institucional do dever de prestar contas e da missão constitucional dos órgãos de controle, orientada pelos princípios da legalidade, da transparência, do interesse público e do controle social.
Dimensões política e indenizatória seguem válidas
Embora a morte extinga a dimensão sancionatória do processo — por ser personalíssima, conforme o artigo 5º, inciso XLV, da Constituição —, as demais dimensões permanecem válidas: a dimensão política, que objetiva subsidiar o julgamento político pelo legislativo e garantir a accountability, cuja defesa dar-se-á pelo representante legal sucessor do ente federativo; e a dimensão indenizatória, que pode ser direcionada aos herdeiros do gestor falecido, nos limites do patrimônio transferido.
Em razão disso, entende-se legítima a atuação dos herdeiros nos autos do processo, em observância à ampla defesa e o contraditório, e dos órgãos de advocacia pública do ente federativo envolvido.
Na mesma linha, entende-se que o ente federativo municipal ou estadual deve ser notificado a se manifestar, uma vez que a prestação de contas é imposição feita também ao Poder Executivo, como órgão responsável pela atividade financeira estatal, por força do artigo 82 da Lei nº 4.320/64. Tal medida se impõe e seu descumprimento, como já dito, pode ensejar intervenção, nos termos dos artigos 34, VII, ‘d’, e 35, II, da Constituição.
Conclui-se, assim, que a morte do chefe do Poder Executivo no curso do processo de contas anuais não constitui óbice à sua regular análise. Ao contrário, impõe-se a continuidade do exame pelo tribunal de contas, cuja missão constitucional de emitir parecer prévio é indeclinável. Trata-se de instrumento de controle essencial à República, expressão do direito público subjetivo do cidadão à boa governança, que não pode ser comprometido por circunstâncias de natureza pessoal, sob pena de enfraquecimento da soberania popular, do interesse público e da transparência na administração pública.
[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
[2] TCE-MG. Prestação de Contas do Executivo Municipal nº 969021. Plenário. Data do julgamento: 04/11/2020. Rel. Conselheiro Cláudio Terrão.
[3] TCE-ES. Prestação de Contas do Executivo Municipal nº 02127/2020-7. Primeira Câmara. Data do julgamento: 23/07/2021. Rel. Conselheiro Rodrigo Coelho do Carmo.
[4] TCE-PE. Prestação de Contas – Governo. Processo nº 18100222-0. Segunda Câmara, Data de Julgamento: 12/03/2020, Rel. Conselheiro Carlos Porto.
[5] TCE-RS. Contas de Governo. Processo nº 04221-02.00/17-6, Primeira Câmara, Data de Julgamento: 16/04/2019, Rel. Conselheiro Alexandre Postal.
[6] COUTINHO, Doris de Miranda. Prestação De Contas De Governo. 1.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 5.
[7] BRASIL. Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento. Art. 9, inciso II.
[8] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Art. 52, parágrafo único.
[9] CAVALCANTI, Augusto Sherman. O processo de contas no TCU: o caso de gestor falecido. Revista do Tribunal de Contas da União, Brasília, v.30, n. 81, p. 17-27, jul. /set. 1999.
[10] Idem. p. 17.
[11] Ibidem. p. 18.
[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 729744. Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, 2016.
Fonte: Conjur