Opinião
Giuliani, Alessandro, e os conceitos clássico e moderno de prova
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No âmbito do Direito Probatório, o que se convencionou chamar de “Teoria Racionalista da Prova” se vincula ao marco da modernidade e, por conseguinte, do conceito moderno de prova e da pretensão de objetividade e assertividade do método científico que demarca aquele momento histórico.
Para essa intelecção, quantos mais elementos de informação aportarem ao processo, maior será a probabilidade de que a decisão judicial seja acertada. Portanto, quaisquer que sejam os fundamentos para erigir, por exemplo, as regras de exclusão probatórias, estas operariam no sentido de impedir que o juiz do fato conhecesse determinadas informações, o que se tornaria problemático quando se estivesse diante de informações relevantes, ou sejam, de provas que, se admitidas, poderiam condicionar a decisão final sobre os fatos da causa e maximizar a possibilidade de “apuração da verdade” desses fatos [1].
É desde essa perspectiva que se tem afirmado que nenhuma regra probatória seria necessária em um sistema de investigação que fosse voltado à “busca da verdade”, o que conduziria, lado outro, a um princípio geral no sentido de que “o tomador da decisão desempenha melhor a sua função dispondo do maior conhecimento disponível”, de modo que “limitar a introdução de provas seria limitar as funções do órgão julgador” [2].
Assim, a concepção moderna de prova vê no alargamento do campo de investigação o meio para um melhor conhecimento dos fatos (total evidence), de que decorre que a determinação do fato surge como uma operação técnica, em uma realidade fenomênica que opera com a pretensão de autonomia completa. Essa racionalidade é que torna possível a introdução de critérios quantitativos e numéricos para o acertamento do fato, já que a história da lógica da prova se identifica com a história da lógica indutiva e, como consequência do progresso científico e da aplicação dos métodos dessa natureza, a teoria da prova foi igualmente desenvolvida em estreita relação com os procedimentos científicos.
Alessandro Giuliani, jurista italiano que, não obstante, tem sido pouco explorado por aqueles que tratam do tema, traz a lume, por seu turno, com profundo conhecimento histórico-filosófico, a perspectiva clássica da prova, desenvolvendo o argumento de que o direito, com suas categorias próprias, foi fundamentalmente responsável pelo desenvolvimento daquele conceito – soterrado, de certa forma, pela modernidade e pelo seu método científico próprio. Um dos tantos méritos do autor, nesse fôlego, é colocar em evidência o caráter seletivo do conhecimento e relativo do fato: preocupada com o erro, a concepção clássica de prova renuncia ao conhecimento na sua totalidade.
Sua obra Il Concetto di Prova: Contributo Alla Logica Giuridica (1961) se estabelece desde o marco do interesse dos filósofos e juristas no processo de elaboração do raciocínio dos juízes. Uma lógica, portanto, propriamente jurídica, desde a qual se desenvolve a metodologia da hipótese: dá-se mais atenção ao provável; o fato não pode ser conhecido em sua totalidade, como alguma coisa externa ao trabalho de reconstrução; o conhecimento dos fatos se adquire por meio da probabilidade, que é relativa, e o fato como verdade não existe.
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Para Giuliani, a revalorização da lógica jurídica coincide com a revalorização da retórica (v.g. com C. Perelman, em A Nova Retórica) e da própria relação da retórica e da filosofia, bem como com a percepção, pela lógica contemporânea, do caráter refutatório da lógica estoica. Essa inquietação atinge também a filosofia do direito, acostumada com a modelagem do seu pensamento (jurídico) pelos filósofos. Para Giuliani, a ciência do direito, uma vez resgatada as particularidades da lógica jurídica, deixará de ser caudatária da filosofia.
Assim é que o autor, ao se debruçar sobre a “indagine del ragionamento dei giuristi” e a “logica della giurisprudenza”, categorias que abarcam o procedimento de revalorização da retórica, explica que os fundamentos da lógica grega se desenvolvem a partir da retórica judiciária e do processo. No plano da arte judiciária, os gregos identificaram pela primeira vez, ao elaborar o conceito de indícios, as implicações lógicas da passagem do que é presente e visível àquilo que não é objeto de experiência, mas de reconstrução imaginária; tem-se aí o que o autor chama de o mistério do juízo e o mistério do processo.
O conceito de prova, que data do início do século 5 a.C., tem assim estreita conexão com a técnica do processo, de modo que a concepção clássica categoriza a prova como argumentum, ou seja, como construção essencialmente argumentativa. A prova surge sobretudo no seu aspecto “lógico” de argumentação, de razão; despida da pretensão totalizante da verdade, o seu âmbito é o da dúvida e do provável, não do evidente.
A lógica no mundo clássico portanto surge e se desenvolve relacionada à técnica processual, que por sua vez terá efeitos sobre a estrutura daquela: o procedimento de aquisição de conhecimento – pelo qual a partir da presença de alguma coisa pode-se concluir a existência de outra coisa que não é presente ou aparente – deve ser lógico e racional, embora, como se verá mais adiante, não se confunda com a racionalidade moderna.
A retórica, a teoria dos indícios e as primeira práticas judiciárias
O conceito clássico de prova remonta à contribuição dos primeiros oradores sicilianos (ou áticos) ao desenvolvimento da retórica como fenômeno cultural ligado à prática e à necessidade judiciárias, bem como da sua relação com a lógica. Nesses termos é que, em torno do século 5 a.C., na Sicília, a teoria dos indícios foi construída inicialmente sobre o terreno da arte judiciária e se tornou um terreno comum entre a retórica e a lógica, a ponto de se confundirem os limites entre as duas disciplinas.
Nesse contexto, a retórica nasce como uma lógica opinativa, cuja eloquência surge com o restabelecimento de tribunais depois de épocas tirânicas, em que se discutia a reivindicação de propriedades confiscadas. Sua origem, portanto, entrelaça-se com a problemática do direito desde as suas primeiras formulações, e nela já está implícita uma lógica da opinião.
A retórica decorre, em seus primórdios, de exigências práticas, e se afasta de problemas teóricos, embora, mais tarde, implique uma teoria da argumentação e das provas. Para tanto, sua preocupação com o verossímil compartilha dos seguintes valores da cultura grega: (a) caráter competitivo e contraditório da discussão; reflexo do caráter judiciário e das primeiras técnicas de eloquência; (b) igualdade nas palavras, que pressupõe um discurso entre homens iguais; (c) a elaboração de uma tábua de valores: justo, bom, útil, que dão origem a três tipos de retórica: judiciária, epidítica e deliberativa, de que decorre que a retórica é axiologicamente orientada, e que, para argumentar, é preciso aderir a certos valores.
De certo modo, a retórica se vale da categoria da aparência: a partir da presença de alguma coisa se pode deduzir a existência de outra coisa que não é presente ou aparente. A percepção, elemento empírico, era um meio para alcançar o conhecimento, ainda que as coisas observáveis poderiam indicar coisas imperceptíveis. Esse método indutivo já havia sido construído pela medicina a partir da observação empírica dos sintomas, e a retórica pré-aristotélica moldará seu caminho para o conhecimento a partir do método da medicina. Ou seja: com olhos à experiência, renuncia-se às explicações causais dos fenômenos (método dedutivo) a menos que a causa não possa ser explicada empiricamente.
Assim, de acordo com Giuliani, a teoria dos indícios nasce da imitação dos métodos das ciências empíricas mais avançadas da época, principalmente a medicina.
Para a retórica, a probabilidade envolvia analisar a relação entre uma determinada hipótese e as provas que a deviam convalidar. O conceito de probabilidade era analisado em relação a um evento único, não a uma série de fenômenos. O termo probabilidade comportava, assim, dois significados principais: grau de confirmação de uma hipótese em relação a determinadas provas e frequência relativa de um evento em uma longa série de eventos. A teoria do verossímil na formulação dos áticos abarca o primeiro significado.
Na base da teoria do verossímil está a constatação de uma necessidade elementar da arte judiciária: o juízo do magistrado não se baseia na verdade, mas na reconstrução mental, imaginativa e portanto precária dos fatos. Embora não teorizada, é subentendida uma concepção de fato que prescinde de qualquer materialidade ou fisicalidade. As partes em realidade não apresentam os fatos, mas as hipóteses (prós e contras) dentre as quais o juiz deve escolher. E, como as partes apresentam os prós e os contras, o contraditório representa um aspecto constitutivo na reconstrução do fato; está implícita uma verdadeira e própria metodologia da hipótese argumentativa, uma lógica da opinião que parte do reconhecimento da autolimitação.
O caráter hipotético do fato traz como consequência a premissa de que o fato não surge como um dado externo, absoluto, mas se identifica com o processo de reconstrução, de modo a não ser possível conceber-se uma verdade material ao lado de uma verdade formal: os fatos são “reconstruídos”, enquanto argumentos, por meio dos indícios e da probabilidade. O fato, então, se identifica com o procedimento de investigação e é condicionado pela existência de provas que sustentam uma certa hipótese. A racionalidade consiste no processo de reconstrução, que atua por meio da oposição de valores – uma reconstrução essencialmente argumentativa, sem pretensão totalizante.
A ideia de que, por meio de representação imaginativa, o passado pode ser objeto de reconstrução – a novação do presente – é uma etapa importante no progresso da humanidade. E nesse fôlego, como se verá na continuação da primeira parte deste artigo, Aristóteles representará, no que diz respeito à apropriação e ao desenvolvimento da retórica, um pensamento de transição: apesar da sua pretensão de originalidade, os traços das tradições precedentes lhe são bem visíveis, além do que a crítica os colocou em franca evidência.
[1] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2016, p. 176-177.
[2] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal II: autoritarismo cool e economia política do processo penal brasileiro. 1. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2023, p. 536.
Fonte: Conjur