Antonio Augusto/STF
No Estado de direito, o poder de julgar está limitado pela forma. Nenhuma decisão, por mais nobre que seja a sua motivação, e isso vale para qualquer lado, pode prescindir do devido processo legal — sobretudo quando se trata de matéria constitucional de alta relevância, como na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442.
O caso, que discute a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, extrapola o debate de mérito e revela um ponto estrutural: o Supremo Tribunal Federal deve ser, antes de tudo, o guardião de seu próprio regimento e das regras que asseguram a legitimidade de sua jurisdição.
Destaque no âmbito do STF ainda implica reinício
A Resolução nº 642/2019, com a redação da Resolução nº 669/2020, estabelece que, havendo pedido de destaque, o julgamento será reiniciado no ambiente físico.
A escolha do verbo “reiniciar” não é casual. Ela reflete a lógica de assegurar igualdade deliberativa entre os ministros e plena possibilidade de contraditório e sustentação oral. Diferentemente do pedido de vista, que apenas suspende o julgamento, o destaque tem a função de “trazer à mesa” os casos de maior complexidade ou repercussão social, garantindo debate presencial e transparência.
ADI 5.399 e ausência de alteração formal
Em 2022, ao julgar Questão de Ordem na ADI nº 5.399, o STF, em tese, formou maioria para admitir a preservação do voto de ministro aposentado em processos destacados. Contudo, esse entendimento constou apenas da ementa do acórdão, sem resultar em alteração formal nem do regimento interno, nem da Resolução nº 642/2019.
Em termos técnicos, para os fins que se destina, trata-se de orientação jurisprudencial sem eficácia normativa geral. O próprio Regimento Interno do STF, em seu artigo 364, exige publicação formal da nova redação para que ela entre em vigor.
Enquanto não houver ato publicado, permanece vigente a regra literal: o pedido de destaque reinicia o julgamento e invalida os votos anteriores.
STJ e TJ-RJ positivaram a regra
No STJ, a Resolução STJ/GP nº 3/2025 estabeleceu, em seu artigo 10, que o destaque impede o julgamento virtual e determina o reinício da sessão em ambiente presencial, com nova pauta e possibilidade de sustentação oral. O § 3º do mesmo dispositivo, porém, ressalva que o voto já proferido por membro do colegiado que venha a deixar o cargo será computado, sem possibilidade de modificação. Ou seja, o tribunal positivou expressamente a exceção — preserva-se o voto do ministro aposentado, mas dentro de um rito claro e previamente publicado.
Spacca
No TJ-RJ, o artigo 97 do Regimento Interno adota sistemática semelhante: o pedido de destaque retira o processo do ambiente virtual e o encaminha para julgamento presencial com reinício da deliberação, desconsiderando-se os votos já lançados, salvo aqueles proferidos por julgador afastado ou substituído definitivamente. A norma fluminense, portanto, também formaliza o alcance e os limites da preservação de votos, reforçando a importância da publicidade normativa e da segurança jurídica.
Ambos os tribunais, assim, trataram o tema por via formal, conferindo ao procedimento clareza, previsibilidade e validade erga omnes — exatamente o que ainda falta ao Supremo Tribunal Federal, cuja orientação sobre o tema permanece apenas na ementa da ADI 5.399, sem alteração expressa da Resolução 642/2019.
Episódio do 17 de outubro de 2025
Às vésperas de sua aposentadoria, o então presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, cancelou o próprio pedido de destaque na ADPF 442, alegando urgência pessoal.
No mesmo dia, o atual presidente, ministro Edson Fachin, convocou sessão virtual extraordinária para ocorrer poucas horas depois, sem republicação de pauta e em descompasso com qualquer um dos prazos mínimos estabelecidos no Regimento Interno do STF — providência que, de todo modo, mostrava-se logicamente inviável diante da motivação invocada pelo então ministro Barroso para o cancelamento do pedido de destaque.
O voto então juntado, cuja fundamentação substancial ocupa pouco mais de duas páginas, não observou o rito regimental de publicidade e contraditório. Trata-se, portanto, de um voto juridicamente impossível, proferido à margem das normas internas que condicionam a validade da deliberação colegiada.
Motivação e finalidade
A Constituição (artigo 93, IX) exige que toda decisão judicial seja motivada. A Lei nº 9.784/1999, que rege o processo administrativo consagra o princípio da finalidade como vetor de validade do ato.
A aposentadoria de um ministro não é fundamento jurídico idôneo para cancelar um pedido de destaque, sobretudo quando o motivo que o ensejou — a necessidade de debate presencial — persiste.
A revogação do destaque por motivo pessoal aproxima-se do desvio de finalidade, uma das hipóteses clássicas de nulidade do ato público.
Em casos de grande repercussão, o rito deve refletir impessoalidade e previsibilidade, não conveniências individuais.
Ministro Fachin e o dever de coerência institucional
Certa feita, o ministro Edson Fachin, ao discutir a possibilidade de modificação da Resolução nº 642/2019, advertiu para os riscos de retroatividade de eventuais alterações regimentais.
A manifestação ocorreu no plenário do Supremo Tribunal Federal durante análise de ofício apresentado pelo ministro Marco Aurélio, que, às vésperas de sua aposentadoria, solicitara o cômputo de seus votos em 23 processos com pedido de destaque. A questão foi debatida sob a presidência do ministro Luiz Fux, e o episódio foi noticiado oficialmente pelo próprio STF, em 22 de outubro de 2021, sob o título “Ministro Luiz Fux reforça que ações com pedido de destaque no Plenário Virtual têm julgamento reiniciado, conforme prevê normativo”.
Naquela ocasião, Fux reiterou que, de acordo com o artigo 4º, §2º, da Resolução nº 642/2019, os processos com pedido de destaque devem ter o julgamento reiniciado, sem aproveitamento dos votos lançados — sejam eles do relator ou dos demais ministros —, em respeito ao princípio do juiz natural e à necessidade de deliberação presencial.
Durante o mesmo debate, o ministro Edson Fachin ponderou que o acolhimento da proposta de Marco Aurélio exigiria alteração formal da Resolução 642/2019 e que eventual mudança regimental somente produziria efeitos após sua publicação, salvo retroação expressamente prevista — nesse último caso, alertou para eventuais efeitos sobre a segurança jurídica.
O pronunciamento de Fachin, portanto, vinculou a eficácia das eventuais alterações regimentais à exigência de publicação e de observância da segurança jurídica, reafirmando a literalidade da Resolução nº 642/2019 e a necessidade de reinício dos julgamentos destacados.
Não nos parece, ademais, que no julgamento da questão de ordem anteriormente mencionada, ocorrido em 2022, o ministro Edson Fachin tenha alterado o seu posicionamento quanto à necessidade de observância do devido processo legal. Ao contrário, a sua postura sempre refletiu uma preocupação constante com a segurança jurídica e com a força normativa das formas processuais como garantia da legitimidade do próprio exercício jurisdicional. Essa coerência reforça a expectativa de que, na condição de presidente, o ministro preserve a mesma integridade de compreensão sobre o valor da forma como expressão do devido processo constitucional.
Sendo assim, já na presidência do STF, cabe-lhe a missão de garantir a coerência dessa advertência. Restabelecer o rito e devolver a ADPF nº 442 ao plenário físico é preservar a integridade institucional do Tribunal e a legitimidade da deliberação colegiada.
Forma não é formalismo
Exigir o cumprimento das regras processuais não é apego a ritualismo, mas expressão da própria racionalidade do Estado de direito. A forma é o modo pelo qual o poder se autolimita, impedindo que a vontade individual de um julgador ou a conveniência institucional do momento se sobreponham à legalidade. Em matéria constitucional, onde se decide não apenas o direito de uma parte, mas o próprio alcance de normas fundamentais, a forma é o que assegura a legitimidade do resultado, a previsibilidade da decisão e a igualdade das partes no processo.
A história do constitucionalismo demonstra que o respeito às formas é o primeiro passo para a contenção dos excessos do poder. O processo é, por natureza, o espaço da razão pública — e as garantias regimentais são seus instrumentos de preservação. O descumprimento de prazos, a ausência de publicidade ou o improviso na convocação de sessões não são meras falhas formais: comprometem a integridade do julgamento, a imparcialidade dos ministros e a confiança da sociedade na jurisdição constitucional.
O Supremo Tribunal Federal não é apenas o guardião da Constituição; é também o guardião de si mesmo. Seus regimentos e resoluções são a concretização institucional dos princípios republicanos. A observância do rito, dos prazos e das formas é o que distingue a deliberação colegiada da vontade solitária, e o que assegura que as decisões da Corte sejam resultado de processo público, contraditório e transparente.
Conclusão
Enquanto não houver alteração formal da Resolução nº 642/2019, o pedido de destaque implica o reinício do julgamento, e os votos lançados antes ou após o cancelamento do destaque, sem alteração das circunstâncias fáticas que o justificaram, não podem ser aproveitados. A sessão virtual de 17 de outubro de 2025, convocada sem razoável prazo de publicidade, não observou os parâmetros regimentais de publicidade e motivação e, por isso, carece de validade formal.
Mais do que uma exigência burocrática, trata-se de uma exigência constitucional: o respeito à forma é o que dá substância à legitimidade das decisões. A forma é o que separa a justiça institucional da vontade individual; é o instrumento que transforma o poder em direito. Mesmo em temas sensíveis, a forma é conteúdo do Estado de direito — e o seu abandono representa, em última análise, o enfraquecimento da própria Constituição.
O Supremo Tribunal Federal não deve ser apenas o guardião da Constituição; também deve ser o guardião de si mesmo.
Fonte: Conjur