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O conceito de “fé pública” em tempos de Democracia

A fé pública emerge como um conceito jurídico e social de considerável relevância, cujas origens remontam aos primórdios das civilizações e, consequentemente, do Direito, na mais purista aplicabilidade do princípio Ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi jus. Nessa esteira, o conceito de fé pública vem sendo paulatinamente aprimorado e consolidado ao longo dos séculos. Encontra-se intrinsecamente ligado ao estreito liame jurídico que a sociedade traça com suas instituições e agentes que as representam. No cenário contemporâneo, marcado pela vigência dos princípios democráticos e pelo Estado Democrático de Direito, a fé pública adquire contornos específicos e, sobretudo, elementos de verificação externa, que merecem uma análise aprofundada.

A origem da fé pública retoma às civilizações antigas, onde a autoridade e a palavra dos líderes e sacerdotes era indiscutível e inquestionável. Em sociedades como a egípcia e a mesopotâmica, a fé pública estava intrinsecamente ligada aos governantes, cuja autoridade divina conferia-lhes um poder incontestável sobre seus súditos. Esses líderes eram vistos como figuras infalíveis, suas decisões eram aceitas de forma acrítica, e suas declarações incontestáveis.

Com o advento do Direito Romano, o conceito de fé pública começou a adquirir contornos mais definidos. A fides publica romana referia-se à confiança (fides, fidúcia) depositada nos magistrados e nas instituições do Estado, sendo um elemento essencial para a manutenção da ordem jurídica e social. A figura do testis unus, testis nullus exemplifica a importância da fé pública, ao requerer a presença de múltiplas testemunhas para a validação de um fato. Um desenho ainda rudimentar do instituto hodierno, em que a verificação externa é um elemento imprescindível de validade.  

Durante a Idade Média, a fé pública consolidou-se no âmbito do Direito Canônico e do Direito Germânico. A confiança nos atos dos agentes públicos e religiosos era vital para a administração da justiça e para a manutenção da ordem social, em um processo de segurança jurídica ficta, baseada nas declarações exaradas por esses agentes. Em seguida, a progressiva secularização e o surgimento dos Estados começaram a transformar a essência do conceito de fé pública, desvinculando-a do caráter sacralizado e aproximando-a de uma perspectiva mais laica e institucional.

Com o advento do Iluminismo e a consequente centralização da ciência, a fé pública passou a depender menos da autoridade intrínseca dos agentes e mais da verificabilidade de seus atos e declarações. No mesmo sentido, A Revolução Francesa e, posteriormente, o Liberalismo trouxeram a ideia de que a confiança pública deveria ser conquistada e mantida por meio da transparência, crescentemente marcada pela participação da sociedade nos atos públicos.

No contexto do Estado Democrático de Direito, a fé pública assume um caráter presuntivo, baseado na confiança inicial nos atos e declarações dos agentes públicos, admitindo-se contestação e, principalmente, estando sujeita a verificabilidade por meio de elementos externos. Assim, a fé pública deixa de ser uma prerrogativa automática e indiscutível, aperfeiçoando-se em um conceito de presunção juris tantum, admitindo provas em contrário.

De toda sorte, em tempos de Democracia, a fé pública transforma-se em um elemento não absoluto na valoração probatória. Nesse sentido, o atual entendimento dos tribunais superiores não estabelece uma hierarquia na credibilidade entre elementos probantes que fruem, ou não, de fé pública. A presunção de veracidade dos atos dos agentes públicos, embora relevante, deve sempre ser acompanhada da possibilidade de verificação e contestação, assegurando que a fé pública seja baseada em fatos concretos e não apenas na autoridade formal dos emissores. Sobretudo na seara criminal, quando o Estado detém o Jus Puniendi, tornar-se-ia incompatível com o Estado Democrático de Direito atribuir maior peso probatório à palavra de um policial, por exemplo, do que ao relato de um cidadão detido por esse agente estatal.

Com o crescimento da tecnologia da informação, a demanda por transparência tem oferecido ferramentas inéditas à sociedade, o que tem desafiado, constantemente, a fé pública, exigindo das instituições uma postura cristalina na divulgação de informações e na prestação de contas aos cidadãos. A fé pública, assim, transforma-se em um conceito dinâmico e adaptável, cuja análise e aplicabilidade devem sempre ser realizadas sob as lentes da sociedade como grande destinatária de todas as políticas públicas do Estado.

A trajetória histórica da fé pública revela sua evolução desde uma confiança quase cega nas autoridades até uma presunção baseada em elementos verificáveis, adequada aos princípios democráticos e ao Estado de Direito. Portanto, no cenário atual, a fé pública deve ser vista como mais um elemento de prova, sem qualquer tipo de prevalência ou superioridade aos demais que compõem o acervo probatório, com valoração bastante diferente da recebida no passado, ou em tempos de exceção.  

Prof. Dr. Marcelo Henrique
Prof. Dr. Marcelo Henrique
Jurista - Escritor - Professor e Palestrante - Jornalista Editor - Chefe do Portal Dokimasia Fundador do Complexo Jurídico Prof. Marcelo Henrique - Diretor do Instituto JNMC CEO do Grupo Erga Omnes

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