Desde o pós-guerra, a dignidade da pessoa humana tornou-se o solo ético do constitucionalismo democrático. É o fundamento moral sobre o qual se reconstruíram instituições e redesenhou-se o mundo jurídico diante da memória das catástrofes do século 20.
Mas o século 21 produz um cenário mais complexo, hipertecnológico, mais perigoso e arriscado. A decisão política tornou-se instantânea; o alcance da técnica, exponencial; a destruição em massa, uma possibilidade sempre à mão. E o corpo humano — sempre vulnerável — tornou-se ainda mais exposto.
Nesse ambiente, a dignidade — enquanto princípio — permanece indispensável. Mas princípios orientam; não contêm. A violência estatal tampouco pode ser tratada como um fenômeno automático ou instintivo, como se houvesse uma pulsão (Trieb) que irrompesse sem mediação racional. Os psicanalistas distinguem com precisão o instinto (Instinkt) — ato puramente biológico, não mediado pela vontade — da pulsão (Trieb) — descarga que, por mais imediata que seja, passa por um mínimo de elaboração psíquica e por um átimo de decisão.
O Estado não pode evocar nem um nem outro: não possui instintos, porque não é organismo biológico; não possui pulsões, porque não é aparelho psíquico. Ele possui instituições, decisões, controles e limites. Biologizar a violência estatal seria dissolver sua responsabilidade jurídica e negar o próprio processo civilizador que Norbert Elias identificou como marca distintiva do Estado moderno (O Estado como agente civilizatório). A violência praticada pelo Estado não emerge — ela é sempre decidida. E, por isso mesmo, precisa ser constantemente submetida ao critério humano, que é seu primeiro e último limite.
O sofrimento humano, por sua vez, não é apenas uma categoria ética ou política. Ele produz efeitos concretos, duradouros, biológicos. Hoje sabemos que experiências extremas de violência, medo e desamparo podem provocar alterações epigenéticas, modulando a expressão gênica e atravessando gerações. Nesse sentido, não importa de que lado esteja o corpo que cai ou o corpo que lamenta: os efeitos da violência — estatal ou não — inscrevem-se na carne, como memória biológica e marca intergeracional. Ao fim, isso reforça a lição de Protágoras: o humano é a medida porque é no humano que tudo retorna.
E aqui é necessário recuperar a frase completa de Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas — das que são, enquanto são, e das que não são, enquanto não são”. Não se trata de relativismo, mas de radicalização da responsabilidade humana diante das coisas que faz e das coisas que deixa de fazer. A violência, como fenômeno moral, é obra humana: não existe sem decisão, sem sentido, sem inscrição simbólica.
O uso da força por criminosos é sempre ilegítimo
Nesse ponto, é importante registrar um pressuposto básico para evitar o equívoco tão comum — e tão pobre — de reduzir qualquer crítica à violência estatal a uma suposta defesa de criminosos. O uso da força por grupos criminosos, especialmente quando portam armas de guerra, nunca é legítimo. Armas de grosso calibre não pertencem ao comércio civil. Sua simples presença fora do âmbito estatal representa negação frontal da própria ideia de Estado e da própria noção de monopólio legítimo da força.
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Portanto, a distinção entre força e violência vale também aqui: o emprego da força por facções criminosas é sempre violência, porque carece de qualquer fundamento jurídico ou moral. Mais ainda: produz dominação territorial, supressão de liberdades e medo constante — fenômenos que corroem a própria ideia de cidade(direito à cidade) e inviabilizam a convivência democrática.
Direitos humanos, crime organizado e a falsa dicotomia
É justamente por reconhecer o poder letal do crime organizado que a crítica à violência estatal não pode ser lida como oposição automática à segurança pública. A dicotomia entre “direitos humanos” e “segurança” é intelectualmente pobre e politicamente nociva. A segurança pública não exige violar direitos; ao contrário: sua violação nunca ocorre “em nome” da segurança, mas em nome de políticas equivocadas que confundem segurança pública com polícia e que transformam o esforço estatal em incursões bélicas realizadas em territórios densamente habitados.
Esse é o ponto: o crime organizado convertido em potência bélica não autoriza o Estado a deslocar-se do campo da segurança para o campo da guerra. No deslocamento, o Estado perde a legitimidade que pretende defender. E instala, no coração das cidades, um teatro de guerra em que moradores e policiais são igualmente lançados numa lógica militar que nada tem a ver com políticas públicas de segurança.
Reconhecer o corpo humano como limite da soberania não significa ignorar a ameaça representada por grupos armados; significa impedir que o Estado responda à ameaça reproduzindo a mesma lógica que combate. A força estatal é legítima porque é limitada, é limitada porque é delegada pelo Poder Constituinte e, em última pelo povo; quando perde a medida, perde também o fundamento republicano que a sustenta.
Força, violência e o corpo como fronteira
A distinção entre força e violência é decisiva. Weber nunca afirmou que o Estado possui o monopólio da violência, mas o monopólio da força física legítima (legitime physische Gewalt). Violência, no alemão contemporâneo, é Gewalttätigkeit: o excesso, o abuso, a ruptura da legitimidade. A força pode alcançar o corpo; a violência o destrói simbolicamente antes de destruí-lo fisicamente.
A violência não está no ato, mas no seu sentido. O médico que corta para curar usa força; o agente que excede o necessário — consciente ou inconscientemente — produz violência. Os danos medem a lesão, não a violência. Violência é o excedente simbólico que converte o outro em coisa, alvo ou objeto.
Por isso, animais não podem ser violentos: podem atacar, defender-se, competir; mas não podem humilhar, punir, castigar ou transmitir dominação simbólica. A violência exige consciência, linguagem e intencionalidade. Quando o Estado a pratica, não age como animal: age contra o que o torna Estado.
Conclusão: Protágoras e o limite corporal da soberania
A força estatal só é legítima enquanto reconhece o corpo como fronteira. E é nesse corpo — vulnerável, sensível, exposto — que se decide diariamente o alcance da soberania democrática. Protágoras, como predito, ensinava que o homem é a medida de todas as coisas; e essa máxima, longe de relativismo, indica que o sentido último da ação política é humano. E somente o humano.
Em uma democracia, o corpo é o limite absoluto da força legítima. Quando esse limite é ultrapassado, a soberania não se afirma — dissolve-se. E o Estado, que deveria proteger, passa a produzir o que pretendia impedir. É por isso que investigar, controlar e limitar o uso da força é o primeiro dever republicano: não para defender criminosos, mas para defender o próprio Estado, sua legitimidade e o pacto mínimo que permite que continuemos a viver juntos.
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Fonte: Conjur
