O superendividamento é um fenômeno social que afeta milhões de brasileiros, exigindo uma resposta legal capaz de resgatar a dignidade e o mínimo existencial do consumidor de boa-fé.
A Lei nº 14.181/2021 aprimorou o Código de Defesa do Consumidor (CDC), introduzindo um processo especial de repactuação de dívidas (artigos 104-A e 104-B, CDC).
Apesar da nobre finalidade desta legislação, que atua como um remédio para o tratamento do endividamento, e da forte base conciliatória do rito, surge uma questão processual crítica para clientes e advogados: o Juizado Especial Cível (JEC) é competente para processar e julgar essa nova ação?
O cerne da questão reside na complexidade inerente ao rito da repactuação, que o afasta da simplicidade do rito sumaríssimo do JEC. O procedimento, que se divide em fase conciliatória e pós-conciliatória (judicial compulsória), estabelece um “verdadeiro concurso de credores que poderão ou não receber partes dos valores dessas dívidas”. [1]
O objetivo é traçar um plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos, preservando o mínimo existencial. Essa sistemática de organização do passivo, que pode envolver uma revisão e integração de múltiplos contratos e dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório (artigo 104-B, CDC), se assemelha à natureza da insolvência.
A tese de incompetência absoluta do JEC apoia-se em três pilares fundamentais:
- Exclusão de ritos especiais
A Lei nº 9.099/1995, que rege os Juizados, é voltada para causas de menor complexidade. O procedimento de repactuação da Lei 14.181/2021 é um rito especial com características e requisitos próprios.
O Enunciado 08 do Fonaje (Fórum Nacional dos Juizados Especiais) expressa de forma categórica: “As ações cíveis sujeitas aos procedimentos especiais não são admissíveis nos Juizados Especiais.”
- Analogia à natureza falimentar/insolvência
O § 2º do artigo 3º da Lei 9.099/1995 exclui expressamente da competência do JEC as causas de natureza falimentar, fiscal e de interesse da Fazenda Pública.
Dada a natureza de concurso de credores do processo de repactuação, o artigo argumenta pela aplicação analógica dessa exclusão, pois o procedimento, ao gerir o passivo total, assume uma complexidade que o equipara à insolvência civil.
Nas palavras do autor Luiz Fux [2], a proibição deve se estender a todas as causas que “participem de alguma forma da natureza dessas onde há proibição”.
- Jurisprudência do STJ
Em 2023, a 2ª Seção do STJ, ao julgar o CComp 193.066/DF [3], firmou entendimento crucial sobre a competência.
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O Tribunal declarou que a Justiça Comum Estadual/Distrital é a competente para processar e julgar as demandas oriundas de ações de repactuação de dívidas, mesmo na hipótese de haver interesse de ente federal (como a Caixa Econômica Federal).
O fundamento principal foi justamente que a existência do concurso de credores (previsto nos artigos 104-A, B e C, do CDC) atrai a competência da Justiça Comum, confirmando a impossibilidade de o juízo singular e célere do JEC lidar com tal complexidade.
Conclusão
A Lei do Superendividamento é um marco que promove a dignidade da pessoa humana e inclusão social do consumidor superendividado. Contudo, para garantir a efetividade do procedimento e da própria legislação, deve-se analisar corretamente a competência da ação.
Como visto, a ação do superendividamento possui rito próprio, especialmente para garantir ao superendividado uma análise aprofundada e cuidadosa de seus débitos, o que naturalmente demanda maior tempo de apreciação, especialmente pelo frequente concurso de credores envolvido.
Isso vai de encontro com o rito do Juizado Especial Cível, pensado justamente para ser mais célere e simples. Por tal razão, a ação da Lei nº 14.121/2021 deve ser ajuizada a Vara Cível da Justiça Comum Estadual/Distrital.
Somente tal foro possui a estrutura e a cognição adequadas para conduzir o rito especial do superendividamento, garantindo a efetividade da lei e a reinserção do consumidor no mercado.
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Referências
BRASIL. STJ. Conflito de Competência n. 193.066/DF. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. 2ª Seção, julgado em 08/03/2023.
EFING, Antonio Carlos; OYAGUE, Adriana. O processo judicial de repactuação das dívidas: modelo brasileiro de mínimo existencial instrumental. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 144, ano 31, p. 17-35, nov./dez. 2022.
FONAJE. Enunciado 08.
FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. 57. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. pp. 590-591.
[1] OLIVEIRA, Amanda Flávio de; MIRAGEM, Bruno; MARQUES, Claudia Lima; Magalhães, Lucia Ancona Lopez de. Direito do consumidor: 30 anos do CDC: da consolidação como direito fundamental aos atuais desafios da sociedade. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 95.
[2] FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 172.
[3] BRASIL. STJ. Conflito de Competência n. 193.066/DF. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. 2ª Seção, julgado em 08/03/2023.
Fonte: Conjur