Mercado JurídicoA consulta pública da ANA sobre arbitragem no setor de saneamento

A consulta pública da ANA sobre arbitragem no setor de saneamento



Em fevereiro deste ano, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) abriu a Consulta Pública 1/2025, de modo a receber contribuições para aprimoramento de norma regulando o procedimento administrativo de ação arbitral para solução de conflitos no setor de saneamento básico. As contribuições foram recebidas até o dia 3 de abril.

A regulação da ação arbitral administrativa no setor está em linha com a lei de criação da ANA (Lei Federal 9.984/2000) e o próprio Marco Legal do Saneamento (Lei Federal 11.445/2007), em especial por conta de alterações implementadas pela Lei Federal 14.026/2020.

Com a inovação nas leis, a ANA passou a ter competência específica para disponibilizar “ação mediadora ou arbitral” nos conflitos que envolvam atores do setor, podendo os contratos preverem tanto a arbitragem como outros mecanismos privados de solução de disputas. Não à toa, a consulta pública faz parte da Agenda Regulatória da agência para o biênio de 2025/2026.

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Ainda, o fomento aos métodos alternativos de solução de conflitos vai ao encontro de tendência presente em vários setores da infraestrutura. A título de exemplo, é possível rememorar a recente aprovação de Manual de Mediação e Arbitragem Regulatória pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) e a regulamentação dos dispute boards pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).

De modo ainda mais amplo, trata-se de aceno à visão moderna do Direito Administrativo, mais tendente à consensualidade[1] e ao estabelecimento de uma relação horizontal com a administração, do que o tradicional engessamento histórico desta seara do direito. Consensualidade não significa complacência, mas deve impor à administração – neste caso, mediante a figura das agências reguladoras -, o caráter negocial para exercício da função administrativa[2].

No entanto, a efetividade deste tipo de instituto está intimamente ligada à força da respectiva agência reguladora atuante. Ainda que a origem das agências reguladoras, que remonta aos anos de 1997, represente uma importação estrangeira razoavelmente imprópria[3], é inegável sua essencialidade para a higidez do ambiente de negócios de infraestrutura, com maior atração de investimentos privados e gestão contratual mais eficiente.

Ao menos em tese. Há discussões quanto à eventual usurpação de competência governamental por agências reguladoras, que passam a formular políticas públicas, mas para fins deste breve comentário, será considerado o papel ideal das agências, em tese.

Uma agência reguladora forte, bem institucionalizada, com regulamentação bem estruturada, naturalmente promove um ambiente propício a negócios, com ponderação de interesses públicos e privados. O outro lado da moeda, porém, é o investimento e confiança, pelos atores envolvidos, neste ambiente.

Nada adianta a criação, regulação e fomento a institutos regulatórios que possam resolver conflitos (arbitragem e mediação regulatórias, dispute boards, etc.) se não for alterado o raciocínio predominante – e até mesmo cultural – vinculado a uma necessidade quase precípua de resolução de todo e qualquer conflito por meios judiciais. Ainda que este conflito seja especificamente setorial, com diversas implicações técnicas e econômico-financeiras que normalmente não são dominadas por juízes de Varas da Fazenda Pública.

Usualmente, se nota que os players que litigam em processos administrativos, no âmbito de agências reguladoras, comumente encaram a via administrativa como uma etapa burocrática irremediável, parte do iter necessário e esperado antes que se possa levar o tema ao Judiciário. Crê-se, frequentemente, na máxima de que a solução do tema pela própria agência, responsável pela regulação, é remotíssima e necessariamente dependerá de intervenção judicial.

Daí temos, normalmente, a exemplo da seara sancionatória, processos administrativos com defesas e recursos elaborados de forma muito singela, superficial. Na outra ponta, muitas vezes se observa também a falta de apreço do órgão público para decidir de forma bem fundamentada, com vistas a efetivamente tentar resolver a questão em definitivo. Não raramente, as partes dedicam pouca energia ao processo administrativo, aguardando, ao que parece, o momento de discutir o tema judicialmente.

Não se defende uma visão romântico-utópica do processo como um meio para dirimir as animosidades entre as partes contratantes. Sim, as controvérsias e o contencioso, ainda que administrativo, implicam litígio e embate de pretensões. O que se afirma é que a via administrativa deve ser tratada com a devida seriedade, com vistas à resolução de mérito da lide.

Para a agência reguladora, é fiscalizar, decidir e instruir de forma fundamentada, proativa e eficiente, seja para manter a sanção ou não. Para o particular, é litigar de forma robusta, afastando penalidades impróprias, adequando-as à proporcionalidade ou firmando compromissos para prestação mais eficiente de seus serviços. 

Em outras palavras: a arbitragem regulatória é medida positiva, mas apenas terá efeito prático vantajoso ao setor se as partes envolvidas também acreditarem e investirem na resolução das questões, na independência da agência reguladora e na lisura do ambiente regulatório. Isso é especialmente relevante ao tratarmos do setor de saneamento básico, dominado por discussões técnicas e peculiaridades que fogem, normalmente, ao domínio daqueles que exercem a função judicial.

Passando ao caso concreto da ANA, tem-se que a regulação pretendida pela agência busca o estabelecimento de procedimento ágil e eficiente para resolver conflitos, com o objetivo de garantir prazo máximo de 90 dias para a resolução dessas controvérsias. Visa-se, também, a trazer maior previsibilidade e transparência na resolução de conflitos no setor de saneamento básico.

Além de conceitos gerais (inclusive diferenciando a arbitragem de mediação), a norma posta em consulta também estrutura o procedimento arbitral em 7 fases principais, a saber:

  1. Solicitação de instauração;
  2. Juízo de admissibilidade;
  3. Designação do árbitro;
  4. Produção de provas;
  5. Instrução processual;
  6. Apresentação de alegações finais; e
  7. Decisão arbitral, homologada pela Diretoria Colegiada da ANA

Quanto à composição dos julgadores, previu-se a designação, como regra geral, de um único árbitro administrativo, mas sua decisão final deve ser apreciada e homologada pela Diretoria Colegiada da ANA. Apesar de culturalmente a condução por árbitro único ser menos comum do que aquela por tribunal arbitral, este cenário tende a garantir maior celeridade ao procedimento.

Foi estabelecido que a atuação como mediador em determinado caso impede a atuação do servidor  como árbitro na mesma disputa, em linha com disposição da Lei Federal 13.140/2015, que trata da mediação entre particulares e da autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública (artigo 7º). Além disso, qualquer indicação de árbitro poderá ser contestada pelas partes caso haja suspeição ou impedimento, conforme previsto na legislação processual.

No mais, o árbitro administrativo tem o dever de se declarar impedido caso identifique qualquer fator que possa comprometer sua imparcialidade.

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Considerando a modernização dos procedimentos administrativos, a ANA determinou, também, que as reuniões e audiências do processo arbitral sejam preferencialmente realizadas por videoconferência.

É possível concluir, assim, que a norma posta em consulta pública pela ANA propicia a solução de divergências complexas dentro de um ambiente regulado conhecedor de suas peculiaridades.  

Para que este ambiente gere bons frutos e fomente o ambiente de negócios, porém, insiste-se: é necessário investir em sua utilização e efetivação. Mais do que tecnicidades que possam ser levantadas como contribuições à norma posta em consulta, urge o maior rendimento das ferramentas regulatórias postas à disposição dos atores.


[1] Sobre a noção moderna de consensualidade na Administração Pública, faz-se referência ao entendimento de Taciana Mara Corrêa Maia: “Os movimentos transformadores do Estado contemporâneo visaram não somente à reavaliação dos fins do Estado, mas uma nova forma de administrar, cujas referências são o diálogo, a negociação, o acordo, a coordenação, a descentralização, a cooperação e a colaboração. Assim, o processo de determinação do interesse público passa a ser desenvolvido a partir de uma perspectiva consensual e dialógica”. MAIA, Taciana Mara Corrêa. A administração pública consensual e a democratização da atividade administrativa. Disponível em: https://www.unigran.br/dourados/revista_juridica/ed_anteriores/31/artigos/artigo03.pdf . Ademais, leia-se: “Assim sendo, parece ser pertinente apontar a existência de um módulo consensual da Administração Pública, como gênero que abrange todos os ajustes negociais e pré-negociais, formais e informais, vinculantes e não-vinculantes, tais como os protocolos de intenção, protocolos administrativos, os acordos administrativos, os contratos administrativos, os convênios, os consórcios públicos, os contratos de gestão, os contratos de parceria público-privada, entre diversas outras figuras de base consensual passíveis de serem empregadas pela Administração Pública brasileira na consecução de suas atividades e atingimento de seus fins”. OLIVEIRA, Gustavo Justino. SCHWANKA, Cristiane. A administração pública consensual como a nova face da administração pública no séc. XXI: fundamentos dogmáticos, formas de expressão e instrumentos de ação. Disponível em: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 104, p. 303/322, jan/dez 2009.

[2] Neste sentido: “(…) é essencial à noção de moderna regulação que o ente regulador estatal dialogue e interaja com os agentes sujeitos à atividade regulatória buscando não apenas legitimar a sua atividade, como tornar a regulação mais qualificada, porquanto mais aderente às necessidades e perspectivas da sociedade. Fruto da própria dificuldade do Estado, hoje, de impor unilateralmente seus desideratos sobre a sociedade, mormente no domínio econômico, faz-se necessário que a atuação estatal seja pautada pela negociação, transparência e permeabilidade aos interesses e necessidades dos regulados. Portanto, o caráter de imposição da vontade da autoridade estatal (que impõe o interesse público selecionado pelo governante) dá lugar, na moderna regulação, à noção de mediação de interesses, no qual o Estado exerce sua autoridade não de forma impositiva, mas arbitrando interesses e tutelando hipossuficiências.” (MARQUES, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras – Instrumentos do Fortalecimento do Estado. São Paulo: ABAR, 2003.)

[3] A título de curiosidade, leia-se: “Enquanto no sistema europeu-continental, em que se inspirou o direito brasileiro, a Administração Pública tem uma organização complexa, que compreende uma série de órgãos que integram a Administração Direta e entidades que compõem a Administração Indireta, nos Estados Unidos toda a organização administrativa se resume em agências (vocábulo sinônimo de ente administrativo, em nosso direito), a tal ponto que se afirma que ‘o direito administrativo norte-americano é o direito das agências’” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25º ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 521).



Fonte: Jota

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