Licitações e Contratos
O mercado de agenciamento de viagens no Brasil é regulado por legislações específicas que definem claramente os papéis e limitações de cada agente econômico. Persiste, contudo, a prática recorrente e ilegal em licitações públicas para contratação de serviços de passagens aéreas: a adoção do critério de julgamento baseado em “desconto sobre tarifas”.
Esta prática viola dispositivos de múltiplos marcos regulatórios, ignora a realidade mercadológica, configura objeto juridicamente e materialmente impossível e frustra a fiscalização eficaz dos contratos, gerando graves inconsistências fiscais e tributárias.
E o mercado atual está repleto de distorções estruturais, com agências sem vínculo direto com companhias aéreas prometendo descontos irreais, criando competição artificial e desigual que, além de prejudicar agências idôneas, compromete a integridade das contratações públicas.
Inconsistências nos editais
Examinando editais em portais como o www.compras.gov.br, constata-se a contradição elementar e sistemática que perpassa estes instrumentos convocatórios: exige-se desconto sobre a tarifa do transporte aéreo (valor contabilizado no CNPJ das companhias aéreas) e não se permite o mesmo sobre as taxas de embarque (valores contabilizados no CNPJ dos operadores aeroportuários).
Os editais especificam expressamente que o desconto “não incidirá sobre os valores de taxas de embarques”. Esta ressalva específica reconhece que as taxas de embarque pertencem ao CNPJ do operador aeroportuário e que as agências não têm permissão legal para oferecer descontos sobre aquelas taxas.
Contudo, o mesmo raciocínio inexplicavelmente não é aplicado às tarifas das passagens aéreas, que pertencem às companhias aéreas, constituindo receita e base de cálculo tributária própria de seus CNPJs. Esta contradição lógica e jurídica evidencia o problema fundamental dos editais: a falta de análise técnica, jurídica e realista, com perpetuação automática e acrítica de modelos inadequados.
Surge a pergunta inescapável: se o edital reconhece a impossibilidade de desconto sobre a taxa de embarque, por ser receita de terceiro, como pode exigir desconto sobre a tarifa aérea, que também constitui receita de terceiro?
Violação ao artigo 18 da Lei 14.133/2021
O artigo 18 da Lei 14.133/2021 estabelece que a fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento, que deve abordar todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão relevantes. Esta exigência é estruturante, visando garantir que o objeto licitado seja juridicamente possível, materialmente exequível e economicamente vantajoso. Entretanto, muitos estudos técnicos preliminares ignoram aspectos essenciais do mercado, como adiante detalhados.
Ausência de análise do modelo operacional das companhias aéreas
Muitos dos estudos técnicos preliminares não tratam do modelo operacional das companhias aéreas sobre seus próprios descontos, inclusive em seus sites. E é preciso observar o que ocorre com as companhias aéreas:
1) utilizam sistema de precificação dinâmica, com tarifas que variam constantemente conforme múltiplos fatores;
2) não disponibilizam descontos lineares, especialmente, para todas as rotas, classes e épocas do ano;
3) quando oferecem descontos corporativos, fazem-no diretamente para grandes clientes, através de contratos e condições específicas;
4) operam sob o regime de liberdade tarifária, definindo valores por estratégias próprias, sem padronização entre elas; e
5) possuem políticas comerciais distintas e independentes entre si.
Inviabilidade técnica do desconto linear
Uma análise técnica minimamente adequada também revelaria que:
1) companhias aéreas não aplicam descontos lineares nem mesmo em seus próprios websites;
2) tarifas variam constantemente, inclusive várias vezes ao dia pela ocupação de aeronaves e outros fatores;
3) classes tarifárias possuem preços e condições distintas; e
4) antecedência da compra, sazonalidade, demanda específica e outros fatores impossibilitam a aplicação de descontos fixos.
Logo, agência não pode prometer desconto linear.
Inexistência de política tarifária uniforme
Em razão da liberdade tarifária garantida pelo artigo 49 da Lei nº 11.182/2005, cada companhia nacional ou internacional define tarifas por estratégias comerciais próprias, sem desconto padrão.
Impacto nas bases de cálculo tributárias
Não se pode negligenciar um estudo do impacto nas bases de cálculo tributárias das empresas envolvidas, considerando que a tarifa integra a contabilidade e a tributação do CNPJ de cada companhia aérea:
1) a base de cálculo dos tributos incidentes sobre a tarifa aérea pertence apenas à companhia aérea, logo, agências de viagens não podem alterar a base de cálculo tributária de terceiros;
2) o artigo 12, § 10, da Instrução Normativa RFB nº 1234/2012 estabelece que a base de cálculo da retenção dos pagamentos relativamente às aquisições de passagens aéreas é o valor bruto das passagens utilizadas, não sendo admitidas às agências de viagens efetuarem deduções ou acréscimos a qualquer título;
3) a promessa de desconto sobre tarifas cria situação tributária ilegal; e
4) as soluções de consulta da Receita Federal confirmam que a receita da agência se limita à sua comissão ou taxa de serviço.
Problemática do mercado com agências consolidadas
Spacca
Controle interno e externo precisam atualizar entendimentos para a realidade atual, da predatória presença de agências de viagens consolidadas nas licitações e o caminho para fraudes:
1) agências consolidadas não possuem relacionamento direto com companhias aéreas;
2) não têm acesso “direto” a sistemas de emissão das companhias aéreas;
3) com outra empresa “externa” no caminho, consolidadora, não há certeza das tarifas reais; e
4) não possuem documentação direta das companhias aéreas, apenas faturas das consolidadoras.
Tal omissão configura vício insanável no planejamento da licitação, violando os princípios do artigo 5º da Lei nº 14.133/21 e o princípio da motivação congruente, do artigo 50, § 1º, da Lei nº 9.784/99.
A impossibilidade jurídica do objeto à luz do ordenamento
O objeto licitado, quando vinculado a desconto sobre tarifas aéreas, configura objeto juridicamente impossível, nos termos do artigo 166, II do Código Civil, por violar simultaneamente vários marcos regulatórios distintos.
Violação à Lei das Agências de Turismo (Lei nº 12.974/2014)
A Lei nº 12.974/2014 estabelece em seu artigo 3º, inciso I, que é privativa dessas empresas “a venda comissionada ou intermediação remunerada na comercialização de passagens”. A lei reconhece a natureza jurídica essencial da atividade como intermediação, não como alteração, modificação ou interferência nas tarifas do serviço de transporte de cada companhia aérea.
Violação à Lei da Aviação Civil (Lei nº 11.182/2005)
A Lei nº 11.182/2005 estabelece em seu artigo 49 que “na prestação de serviços aéreos regulares, prevalecerá o regime de liberdade tarifária”, pilar estruturante do modelo regulatório do setor aéreo brasileiro, conferindo às companhias aéreas prerrogativa exclusiva para definição de suas tarifas (edital não pode impor alteração de tarifa por agência).
Legislação tributária (IN RFB nº 1234/2012) e entendimentos da RFB e do TCU
A Instrução Normativa RFB nº 1234/2012 estabelece em seu artigo 12, parágrafo 10, que agências de viagem não podem, sob qualquer pretexto ou circunstância, alterar valor da tarifa, da base de cálculo tributária das companhias aéreas.
A Receita Federal do Brasil entende: “A intermediação na venda e comercialização de passagens individuais ou em grupo, passeios, viagens e excursões, bem como a intermediação remunerada na reserva de acomodações em meios de hospedagem, são operações em conta alheia, da agência de turismo. Nesses casos, a base de cálculo do Simples Nacional é apenas o resultado da operação”. (Solução de Consulta nº 214, de 18 de Agosto de 2008).
E o Tribunal de Contas da União, no Acórdão nº 1323/2012 – Plenário, concluiu que valores de terceiros não constituem receita da agência de viagens.
O paradoxo fiscal e tributário do desconto sobre tarifas
A exigência de desconto sobre tarifas aéreas cria situação juridicamente aberrante: a agência passa a “pagar para trabalhar”, gerando contrato com remuneração negativa.
Alteração ilícita da base de cálculo tributária
Agência que oferece suposto “desconto” sobre a tarifa promete fraudar a base de cálculo tributária de terceiro. A Lei nº 8.137/1990, que define crimes contra a ordem tributária, estabelece como crime “omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias” e “fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos”. Alteração de base de cálculo tributária, com supostos “descontos” na tarifa do transporte, é criminoso, pois a Instrução Normativa RFB nº 1234/2012 proíbe alteração de tarifas.
Emissão de notas fiscais em contrato de remuneração negativa
No modelo baseado em suposto desconto em tarifas, cria-se situação fiscal absurda: o prestador do serviço (agência) estaria pagando ao tomador (órgão público) para executar o serviço. Esta inversão levanta questão fiscal insolúvel: o órgão público emitirá nota fiscal para a agência ou a agência emitirá nota fiscal “negativa”?
Impossibilidade de escrituração contábil
Como seria feita a escrituração contábil de um serviço em que o prestador paga para trabalhar? Como seria contabilizada a “receita negativa” resultante de um contrato em que o desconto sobre valores de terceiros supera a remuneração própria da agência?
Conflito com regras de retenção tributária
No cenário de supostos desconto sobre tarifas, como ocorreria a retenção tributária? Se o fluxo financeiro é invertido, com a agência pagando ao órgão público, quem seria o responsável pela retenção tributária?
Distorção na aplicação da jurisprudência desconexa ou desatualizada
Certos editais citam acórdãos antigos do TCU para justificar práticas que o próprio Tribunal não admite, evidenciando a cópia de modelos sem análise crítica da jurisprudência posterior, pois os antigos acórdãos tinham o pressuposto do tempo no qual havia comissões sobre as quais agências ofertavam descontos. O TCU atestou que isso não existe mais e as companhias aéreas já alertaram que não existem descontos para licitações.
Quanto o TCU constatou o fim das comissões
O Tribunal de Contas da União, nos diversos acórdãos do Processo TC 003.273/2013-0, constatou o fim das comissões das companhias aéreas para as agências de viagens e que o cenário seria de remuneração da agência, não desconto sobre tarifa (“taxa negativa”).
A manifestação das companhias aéreas
Em pregões recentes, notadamente do www.compras.gov.br, constam impugnações com provas documentais da impossibilidade jurídica e material do critério de desconto, com declarações das principais companhias aéreas — Latam, Azul e Gol. Primeiro exemplo foi o da LATAM: “…a LATAM não disponibiliza condições diferenciadas ou descontos específicos para participação das Agências em licitações…”.
A licitação de agenciamento de viagens é o caminho correto
Pelos dados abertos, 100% dos órgãos públicos no Brasil, federais, estaduais, distritais e municipais, incluindo Poder Judiciário, Ministério Público e Tribunais de Contas, realizam licitações de agenciamento de viagens, o que derruba a falácia do credenciamento, da “década perdida”. Os portais de transparência prova que em 2025 o TCU e todos os outros tribunais de contas continuam licitando o agenciamento de viagens, a CGU e todas as controladorias, o STF, o STJ e todos os tribunais do país licitam agenciamento. Aliás, para passagens aéreas o mercado não pode ser “fluido” e “não fluido” ao mesmo tempo, não licitando e licitando a depender de pessoas e fatias de mercado (a Lei nº 14.133/21 não autoriza uma demanda com inexigibilidade de licitação, com um “complemento” via licitação).
Notas finais:
1) se proposta ou lance de taxa agenciamento é “zero” (vai a sorteio), a agência empata e mantem o contrato com base em sua estrutura atual de pessoas, equipamentos e sistemas;
2) se agência promete “taxa negativa” (“desconto”), promete crime e irá alterar valores das tarifas para afirmar que existe desconto; e
3) edital não pode permitir “menor preço” e “maior desconto” ao mesmo tempo, pois isso é uma teratologia ante o artigo 33, incisos I e II, da Lei nº 14.133/21, sendo que a licitação que envolve passagens aéreas não pode ter base em desconto; e
4) licitação para passagens aéreas deve ter apenas o critério de julgamento de menor preço, que é representado pela menor taxa de agenciamento, da agência de viagens, que será a contratada, não promessa de alteração da tarifa do transporte (companhia aérea), como não se admite alteração de taxa de embarque (aeroporto), aliás, duas despesas que correspondem a receitas contábeis e tributárias dos números de CNPJ de terceiras empresas, estranhas ao contrato.
Conclusões
Insistir em editais com imposição de suposto desconto sobre tarifas em licitações de agenciamento de viagens não apenas viola a legislação, como leva a crime tributário e à improbidade administrativa, além de danos ao erário, além do que, a promessa de desconto oculta uma fraude de “maquiagem” de valores reais das tarifas.
A adoção do modelo correto, com remuneração da agência pelo serviço de agenciamento, é a única legalmente permitida e que atende ao interesse público, garantindo contratações transparentes, fiscalizáveis e eficientes.
De outro lado, é urgente que órgãos de controle interno e externo atualizem e modifiquem os seus entendimentos e reconheçam a ilegalidade da participação de agências consolidadas nas licitações, prática que viola a isonomia (uma pessoa, isoladamente, com CNPJ, pode entrar em disputa de milhões de reais em passagens aéreas, sem prova operacional e atestação técnica e condição econômico-financeira e sem viabilizar prova direta dos verdadeiros valores das tarifasm, uma desigualdade que prejudica agências que possuem todas as condições comprovadas).
Também controle interno e externo precisam reformular antigos entendimentos e reconhecer a essencialidade, nos editais, da exigência de cadastro da agência naAssociação Internacional e Transporte Aéreo (Iata), entidade que viabiliza as transações financeiras pelo sistema BSP (Billing and Settlement Plan), para emissões e pagamentos das passagens, inclusive, bloqueando o acesso de agências que não mantiverem a regularidade de pagamentos, as que quebram a condição de crédito para emitir passagens, no fim, algo essencial para atendimento, inclusive a órgãos públicos.
Enfim, o mercado precisa ser considerado, com suas realidades.
Fonte: Conjur