Opinião
O precedente a ser comentado guarda relação com a ação condenatória que objetivou o estabelecimento do dever de indenizar por parte de uma famosa fabricante de armas de fogo, em razão de defeito verificado em um de seus produtos que, no momento do acidente, se encontrava sob a posse de um policial militar. Em suma, o armamento disparou em razão de falha mecânica, atingindo o agente público e causando fratura grave no fêmur.
Marcelo Camargo/Agência Brasil
Em sua defesa, a fabricante defendeu a perda da pretensão do autor que, em sua visão, deveria observar o prazo previsto no artigo 206, § 3º, inciso V, do Código Civil, por não ser aplicável o Código de Defesa do Consumidor (CDC) ao caso, em virtude de a arma ter sido adquirida pela administração pública, e não pelo policial.
O argumento foi rechaçado em primeira instância e pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que, em seus pronunciamentos, entenderam que o demandante poderia ser equiparado a consumidor com fundamento no artigo 17 do CDC, haja vista ter sido vítima do dano provocado pelo defeito de um produto. Dessa forma, deveria ser observado o prazo prescricional quinquenal previsto pelo artigo 27 da legislação consumerista.
Ainda irresignada, a fabricante interpôs recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça apontando terem sido violados dispositivos infraconstitucionais (entre eles o artigo 17 do CDC), tendo sido o apelo admitido pela corte paulista. A controvérsia jurídica está relacionada à possibilidade de equiparação do policial militar a consumidor para fins de aplicação do prazo prescricional vinculado ao regime da responsabilidade civil pelo fato do produto.
Comentários às razões de decidir
A diferença entre o prazo prescricional previsto para os casos de reparação civil, nos termos do Código Civil, e aquele previsto para os casos de acidente de consumo, conforme o Código de Defesa do Consumidor, pode separar a extinção de uma ação e o seu regular prosseguimento. Por essa razão, não são raros entraves no processo para determinar se, no caso, há relação de consumo, para fins de extensão do prazo.
A configuração da relação de consumo depende de pressupostos específicos e definidos pela lei, mas, de forma bastante resumida, deve haver, de um lado, um consumidor e, de outro, um fornecedor. A definição de consumidor não é encontrada em um só artigo, mas em quatro dispositivos legais do Código de Defesa do Consumidor: o caput e o parágrafo único do artigo 2º, o artigo 17 e o artigo 29.
Spacca
Já o fornecedor possui definição ampla, prevista no artigo 3º do código consumerista. Cláudia Lima Marques sustenta que a amplitude eleita pelo legislador é assim para que um maior número de relações possa estar no campo de aplicação do CDC, haja vista que decisiva mesmo é a presença de um consumidor. [1]
O conceito de consumidor stricto sensu é aquele do caput do artigo 2º, ou seja, aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. O Superior Tribunal de Justiça estabeleceu um alargamento desse conceito a partir da teoria do finalismo mitigado, mas essa particularidade não interessa ao comentário que se pretende tecer. O conceito de consumidor importante, aqui, é o consumidor equiparado do artigo 17 do Código de Defesa do Consumidor.
Responsabilidade do fornecedor por danos causados
A equiparação em questão está inserida na seção do código que trata da responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço, ou seja, da responsabilidade civil do fornecedor pelos danos causados por produtos ou serviços defeituosos colocados em circulação. Trata-se de regime que independe da aferição de culpa, desde que seja possível constatar um defeito do produto ou do serviço como o agente causador do prejuízo.
Esse sistema de responsabilização civil é resultado da transposição para o ordenamento jurídico brasileiro do regramento da Diretiva 85/374 do antigo Conselho das Comunidades Europeias (CEE) [2], que buscou uniformizar o regime de responsabilidade pelo fato do produto na Europa. [3] O ato normativo foi inclusive atualizado no final de 2024, agora chamado de Diretiva 2024/2853, que só gerará efeitos a partir de 9 de dezembro de 2026. Curiosamente, ambas as diretivas, antiga e nova, apontam um prazo prescricional menor do que o do CDC para que se peça a reparação de danos causados por um acidente de consumo, de três anos, como é a norma do Código Civil brasileiro. [4]
Para o caso em comento, importa que a diretiva antiga (e também a nova) buscaram instituir um regime de responsabilidade do produtor pelos defeitos dos produtos que coloca em circulação do mercado ao determinar que depende o surgimento do dever de indenizar da presença do defeito, do dano e do nexo de causalidade entre defeito e dano. [5] Veja-se que em momento da algum do texto do ato normativo da União Europeia se requer que a vítima seja consumidora.
Isso porque a normativa europeia utilizou a definição de dano para fixar a noção de vítima, dirigindo-se a um grupo de pessoas que não abrange somente os consumidores, haja vista que todo o indivíduo que sofrer dano consubstanciado em acidente corporal — lesão corporal ou morte — provocado por produtos defeituosos pode acionar diretamente o fabricante para obter a sua reparação. [6]
Relação de consumo
Importando-se essa sistemática para o ordenamento jurídico brasileiro, é certo que a lógica seria a mesma. Não foi transposto um regime de responsabilidade que tenha por pressuposto a verificação dos requisitos legais para o surgimento da figura do consumidor, mas sim a presença ou ausência de um defeito no produto colocado em circulação no mercado de consumo por um fornecedor.
Esse sistema, no entanto, foi integrado ao Código de Defesa do Consumidor, de maneira a tornar necessária a verificação de uma relação de consumo para sua incidência, nos termos dos artigos 2º e 3º. A solução foi justamente a inclusão do artigo 17, que determina que para os efeitos da seção que trata do fato do produto ou do serviço, equiparam-se a consumidores todas as vítimas do evento.
E daí emerge a problemática solucionada no julgamento do Recurso Especial nº 1.948.463/SP. No caso, a fabricante da arma de fogo defeituosa argumentou que, por ter sido firmada relação civil-administrativa com o estado de São Paulo, daí não poderia decorrer relação de consumo que possibilitasse a aplicação do regramento do artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor e, por consequência, também não seria adequada a observação do prazo prescricional quinquenal.
À parte a discussão a respeito da frase “utiliza como destinatário final”, que consta no caput do artigo 2º do código consumerista, as razões de decidir adotadas demonstram que todo o litígio se baseia na possibilidade ou não de se enquadrar o policial militar como consumidor para fins de aplicação do regime de responsabilidade pelo fato do produto — uma problemática causada pelas circunstâncias da transposição para o ordenamento do regramento da Diretiva 85/374.
Isso porque, conforme bem exposto pelo voto do ministro Antonio Carlos Ferreira, que cita o artigo de Daniel Amaral Carnaúba e Guilherme Henrique Lima Reinig, a figura do consumidor é irrelevante para determinar o grupo de indivíduos protegidos pelo regime da responsabilidade pelo fato do produto ou serviço. E isso porque o único indivíduo que deve ostentar uma qualidade diferenciada para aplicação desse regime é o fornecedor, aproximando-se o modelo muito mais de um sistema de responsabilidade reforçada do fornecedor do que de um sistema de proteção especial do consumidor. [7]
Essa ideia guarda relação direta com o próprio conceito jurídico de defeito, qual seja, a desconformidade com a legítima expectativa de segurança. Esse parâmetro de segurança esperado, que deve ser analisado pela perspectiva de uma concepção coletiva da sociedade de consumo, e não pela individualidade da vítima [8], não depende das perspectivas subjetivas do consumidor que adquiriu o produto, mas é construído de forma abstrata levando em consideração o desenvolvimento tecnológico existente à época do fornecimento, os usos e os resultados que dele se esperam e as informações disponibilizadas pelo fornecedor. Conclui-se que estamos diante da tutela de uma expectativa social, e não do consumidor propriamente. [9]
Decisão acertada do STJ
O Superior Tribunal de Justiça adotou corretamente, então, o regime de responsabilização previsto pelo artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor no caso discutido, mas porque o dano foi causado pelo defeito de uma arma de fogo colocada em circulação por um fornecedor. O acórdão consigna essa realidade, inclusive citando fonte doutrinária, mas segue apontando a condição de destinatário final do policial como parte da razão de decidir, visando a justificar a aplicação de um regime legal previsto no código consumerista.
O que se pretende apontar é que o artigo 17 do CDC, aplicado no caso, é dispositivo com o intuito de facilitar um regime de responsabilização que já era livre da discussão a respeito da existência ou não da figura do consumidor desde que foi concebido pelo Conselho das Comunidades Europeias. As partes debateram essa questão desde a primeira instância até o julgamento pelo STJ.
É de se considerar que, fosse desnecessária a arguição a respeito de equiparação a consumidor ou mesmo acerca do uso da arma pelo agente de segurança como destinatário final, o caso poderia ter sido solucionado de forma mais célere e clara, considerando-se tão somente a condição de fornecedor da fabricante do produto e a existência do defeito, em seu conceito jurídico.
[1] BENJAMIN, Antonio Herman V; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 133
[2] O Conselho das Comunidades Europeias existiu até a entrada em vigor do Tratado de Maastricht, em 1993, que transformou a Comunidade Econômica Europeia em União Europeia, reorganizando suas instituições.
[3] BASTOS, Daniel Deggau. A responsabilidade pelos riscos e o defeito do produto: uma análise comparada com o direito norte-americano. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Florianópolis, 2020. p. 169.
[4] Artigo 16º da Diretiva 2024/2853. Prazo de Prescrição. 1. Os Estados-Membros asseguram a aplicação de um prazo de prescrição de três anos à propositura de uma ação de indemnização por danos abrangidos pelo âmbito de aplicação da presente diretiva.
[5] Artigo 4º da Diretiva 85/374. Cabe ao lesado a prova do dano, do defeito e do nexo causal entre o defeito e o dano.
[6] WESENDONCK, Tula. O regime da responsabilidade civil pelo fato dos produtos postos em circulação: uma proposta de interpretação do artigo 931 do Código Civil sob a perspectiva do direito comparado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015, p. 38.
[7] CARNAÚBA, Daniel Amaral; REINIG, Guilherme Henrique Lima. As normas gerais do mercado no código de defesa do consumidor: por uma releitura do conceito de consumidor equiparado. Revista do Direito do Consumidor. vol. 150/2023. p. 191-233. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.
[8] BENJAMIN, Antonio Herman V; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. Cit. p. 192.
[9] CARNAÚBA, Daniel Amaral; REINIG, Guilherme Henrique Lima. As normas gerais do mercado no código de defesa do consumidor: por uma releitura do conceito de consumidor equiparado. p. 195.
Fonte: Conjur